28/07/2021 - Por: G1 - Globo.com EU ATLETA

Para conquistar medalha na Olimpíada de 2020, os atletas não só precisam vencer a prova, mas também passar pelo desafio de se adaptar ao fuso horário de Tóquio, Japão. À medida que o mundo esportivo se desenvolveu e se profissionalizou, somado à facilidade de deslocamento entre uma região e outra, o calendário e a localidade das competições sofreram mudanças. Dessa forma, os torneios internacionais ganharam espaço, como é o caso das Olimpíadas, evento intercontinental que envolve longas viagens e alterações abruptas de fuso horário. Mas, afinal, qual o impacto da alteração de fuso horário no corpo e na performance dos esportistas? Para responder à essa pergunta, o Eu Atleta conversou com o endocrinologista e médico do esporte Ricardo Oliveira e com o neurocientista Allan Caetano.

O endocrinologista e médico do esporte Ricardo Oliveira explica que as mudanças advindas de um novo fuso horário causam uma dessincronização do relógio biológico, decorrente de desequilíbrios no ciclo de sono e vigília. Esta é uma condição clínica que leva o nome de jet lag ou dissincronose. Nesse casos, podem aparecer sintomas, como irritação, fadiga, dores de cabeça, sonolência, insônia, além de prejudicar o desempenho físico e mental. Em relação à performance esportivo, Ricardo pondera que o impacto do fuso no organismo é muito particular.

- Cada atleta reage de uma forma. Aqueles que estão acostumados às viagens longas sempre têm uma estratégia individual. De acordo com o American College of Sports Medicine (ACSM), o tempo mínimo de adaptação ao jet lag é de um dia para cada fuso horário avançado, o que infelizmente não é viável para a maior parte dos atletas em função de seus compromissos profissionais - explica Ricardo.

Para diminuir os impactos do jet lag, o organismo precisa de um período de adaptação. No caso das Olimpíadas de Tóquio, para que os competidores não tivessem prejuízos nesse sentido, seria indicado que o ajuste ao fuso japonês ocorresse pelo menos 12 dias antes do início da competição.

Mudança de fuso horário e relógio biológico


O relógio biológico é um mecanismo regido pela sequência das horas do dia que regula todas as atividades do organismo. A região do hipotálamo, localizada no cérebro, é responsável pelo controle dos chamados ritmos biológicos ou ciclos circadianos, cujo objetivo é comandar nossas atividades cotidianas, como dormir, acordar e comer.

De acordo com o neurocientista Allan Caetano, é preciso ter em mente que nascemos com três relógios biológicos universais: os “genes-relógios”, que são responsáveis por programar o funcionamento básico de determinados órgãos internos do corpo humano. Basicamente, os cientistas diferenciam os ciclos da cronobiologia de três formas:

  • Ciclo circadiano: tem duração de um dia e é responsável pelos processos do sono e da vigília;
  • Ciclo infradiano: leva mais tempo para concluir, como o ciclo menstrual da mulher;
  • Ciclo ultradiano: opera várias vezes ao longo de um mesmo dia, como a secreção hormonal que ocorre em horários preestabelecidos por esse ciclo.

- A questão é que esses relógios internos, apesar de ter uma organização inata, ajustam-se ao ambiente a partir de neurônios sensoriais que buscam sincronizar os diferentes ciclos de modo equilibrado. Quando os atletas olímpicos chegaram ao Japão, os relógios biológicos sofreram influência do relógio natural, ou seja, os ponteiros tiveram que ser ajustados pelo próprio organismo, que busca se adaptar de acordo com os estímulos internos e externos - aponta o neurocientista.

Além disso, Ricardo acrescenta que a mudança de rotina também impacta o organismo com a produção de alguns hormônios em especial, como o GH (hormônio do crescimento), cortisol e melatonina. Produzida pela glândula pineal, a melatonina é liberada no início da noite, quando cai a iluminação natural, e tem pico horas após o anoitecer, ajudando na indução do sono. Dessa forma, com mudanças abruptas de relógio, ocorre o jet lag: o corpo funciona em um determinado fuso horário quando, na realidade, o relógio local funciona em outro.

Impactos do jet lag

Dentre os três relógios biológicos, o circadiano é o que tem maior controle sobre o tempo de funcionamento do organismo, pois monitora as horas de vigília e de sono. Nesse sentido, os relógios menores são diretamente influenciados por qualquer alteração no ciclo circadiano. Quando uma pessoa perde uma ou mais noites de sono, o sistema temporizador circadiano, localizado na região cerebral do núcleo supraquiasmático que conta com cerca de 20 mil neurônios, permanece ativo ao longo do tempo em que a pessoa está acordada.

- Quando dormimos fora do horário de costume, os neurônios fotorreceptores, ou seja, sensíveis/regulados pela luz (localizados na retina), podem ficar supra excitados com a liberação de glutamato, aminoácido importante para o desenvolvimento da plasticidade sináptica, memória e aprendizagem. Esse aminoácido participa ativamente da inibição e manutenção da vigília. Sua presença libera melatonina, hormônio regulador neuroendócrino que influencia no funcionamento do sistema músculo esquelético, cardiovascular, imunológico, além do metabolismo energético das células - explica Allan.

Além disso, ao dormir fora do horário, o relógio circadiano é atrasado e, consequentemente, o ultradiano e o infradiano também. Com o sono atrasado, retardamos o horário da refeição e da digestão, assim como os processos humorais. Além disso, o sono tem papel antioxidante. Durante uma noite de sono bem dormida, o cérebro passa por um processo de limpeza, removendo células neurais mortas ou que tiveram suas conexões rompidas. Outra função fisiológica do sono é a regulação das emoções.

- A neurociência reconhece a existência de neurônios on e neurônios off, que operam de modo antagônico no controle da excitação ou inibição do sistema nervoso central. Outra função do sono diz respeito à emoções, ou seja, a liberação de determinados neuro-hormônios que vão se comunicar entre si. Associados a hormônios liberados por outros órgãos fora do cérebro, esses neuro-hormônios irão influenciar na valência do humor. A falta de apetite alimentar e sexual, a irritação ou impaciência e até mesmo a memória fraca e a falta de atenção são bons indicadores de que o sono da pessoa pode não estar em dia - indica o neurocientista.

Jet lag e desempenho esportivo

Quando há mudanças abruptas de fuso e jet lag, o relógio biológico funciona em outro ritmo do horário local. Com isso, há dissincronose entre os dois relógios, gerando prejuízos na performance do indivíduo. O corpo não responderá da melhor forma e, dessa forma, o desempenho esportivo será afetado.

- É importante destacar que o problema pode acometer não só os atletas, mas toda a equipe por trás (treinadores, auxiliares, médicos etc). Outro ponto interessante é que distúrbios do sono, como o jet lag, podem causar alterações nos hormônios relacionados à fome e à saciedade, o que pode vir a ser mais um obstáculo aos atletas, sobretudo aqueles que precisam de um ajuste fino de peso em tempos de competição - esclarece Ricardo.

No caso de atletas de alto rendimento, alguns cuidados devem ser seguidos antes de uma competição importante com mudança brusca de fuso horário, como é o caso das Olimpíadas no Japão. De acordo com Allan, para uma adaptação saudável, o ideal é passar uma temporada prévia no local onde as competições serão realizadas. Desse modo, o organismo como um todo irá naturalmente buscar se ajustar às mudanças de fuso horário, alimentação, condições climáticas e costumes locais. O corpo precisa de um tempo, uma janela de adaptação para que seus múltiplos relógios possam ser sincronizados com o horário local.

Como se adaptar a outro fuso horário

  • Se possível, tente entrar no novo fuso horário alguns dias antes da viagem;
  • A preferência é chegar no destino final de dia e se manter acordado durante o dia. Em caso de muito cansaço, pequenos cochilos poderão ser tomados, mas bem curtos (não mais de 20 minutos para não atrapalhar o sono durante a noite);
  • Realize as refeições no horário local após a chegada no destino final, optando por refeições leves e bastante hidratação;
  • Indutores do sono poderão ser usados nos primeiros dias, aqueles em que há mais dificuldades para dormir à noite;
  • A suplementação de melatonina pode ser uma opção interessante sobretudo nos primeiros dias após a viagem, afinal, no geral ocorre uma desregulação desse hormônio após grandes mudanças de fuso horário, sobretudo com diferença acima de 4-5 horas.
  • Deve-se ter atenção ao uso de smartphones, pois os mesmos podem interferir na produção de melatonina por conta do espectro de luz azul presente nas telas. Com isso, atletas cada vez mais conectados nas redes sociais devem ter atenção para que o uso desses aparelhos não atrapalhe ainda mais um relógio biológico já “bagunçado” pelo jet lag.

Fontes: Ricardo de Andrade Oliveira é médico endocrinologista e do esporte, ex-professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenador do Departamento de Doenças Associadas da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
Allan Felippe Rodrigues Caetano é doutorando em Neurociências e Comportamento pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).